Sempre que escrevo um poema, um poeta de verdade se remexe no túmulo, por dor ou por pena

segunda-feira, 31 de março de 2014

disse o corvo

hoje um poemirim
vale mais que qualquer linha torta
ou morta


"nem choro 
nem velo"

Guilherme Damasceno  - poemirim

segunda-feira, 24 de março de 2014

férias também acabam em nostalgia ou cabeça vazia é oficina do diabo



Passei pelo bairro de minha infância, do parque que era parada quase obrigatória na volta da escola que ficava no quarteirão de cima restaram apenas canos enferrujados, mato e uma cerca quebrada. Os bancos da praça também quase não mais existem, são apenas lugar de paragem dos drogados que não sabem se é dia ou noite. Antes não existia bem um parque, lembro-me que me sentava com o senhor guardinha que fazia tapetes manuais naquelas armações de madeira. De lá eu olhava minha irmã que jogava vôlei com as amigas, não sei quantos anos eu tinha, talvez quatro ou cinco. Também não me lembro onde minha mãe se encontrava nessas horas, talvez na casa da minha tia  que ela sempre visitava com a minha avó todas as manhãs. A casa da minha tia situa-se exatamente no quarteirão ao lado do quarteirão da praça, mais precisamente entre a praça e a escola que estudei dos seis aos onze anos. Depois dessa casinha demolida, onde ficava o guardinha, veio o parque. Ou não me lembro muito bem se eles conviveram durante certo tempo juntos, a casinha, o guardinha e o parque. Creio agora, forçando um pouco a memória que o guardinha não cuidava da praça, mas a praça sediava uma caixa d’água, provavelmente a que abastecia o bairro, e o guardinha vigiava a caixa d’água e não a praça. Recordo do guardinha sair correndo e deixar o tapete sobre o banco para fechar o registro porque a água estava transbordando pela caixa, que não era bem uma caixa, mas um espécie de cano comprido de uns três ou quatro metros.  E depois disso veio o parque, ou conviveram juntos. Ainda me recordo da vertigem que era aquele brinquedo sem sentido que roda, roda, roda até o estômago embrulhar. Lembro-me também do brinquedo que era uma espécie de treinamento militar com uma série de obstáculos, e da primeira vez que consegui dar cambalhota segurando as argolas, julgando fazer arte circense. Visitava meu tio-avô nessa casa que era da minha tia-avó, ele sempre estava sentado na sua cadeira de balanço na área ao lado de um carranca que ele dizia ter poderes, objeto que minha mãe julgava feio mas que sempre achei deveras interessante. Ele sempre arranjou namoradinhos para mim, geralmente os doidinhos que passavam na rua ou os meninos de cor escura e desdentados, pra ser sincera, nunca me opus veementemente a nenhum deles e até achava graça. Ele também me contava história de quando trabalhava e de como perdeu o dedo no serviço, ele tinha uma mão com um dedo pela metade. No quarteirão do lado esquerdo da praça, o da casa da minha tia-avó era do lado direito, referência de quem estava sentado no banco da casinha do guardinha que fazia tapetes e vigiava a água que transbordava, existia uma mercearia, lá com pouco dinheiro era possível fazer a alegria de toda criança. Seu Pedro, o dono da mercearia, sempre foi um ótimo atendente de mercearia, daqueles simpáticos e que te chamam não pelo nome, mas pela alcunha de neta de fulano de tal. Na mercearia, ao contrário do que se vê hoje em dia, sempre existiam aqueles velhinhos bêbados simpáticos que sempre deixavam você escolher alguma coisa do lugar e anotavam na conta deles. Meu avô era um desses velhinhos, mas não tão simpáticos, que ficavam na mercearia. Às vezes bebia demais e algum dos filhos tinha que buscá-lo, mas não me lembro muito dessas cenas, só de alguns cortes e machucados que necessitavam de curativos. Minha avó costuma contar que eu era a neta preferida dele, por algum motivo a única que ganhava presentes e a única que recebeu realmente seu afeto. Meu avô era moreno, alto, e fazia bicas, que não sei qual o nome moderno para isso. Transferiu o ofício para seu filho, meu tio. Recordo de sua mão trêmula e dos “esbravamentos” quando deixava algum instrumento cair em virtude da doença.
Meu avô foi o primeiro a morrer, em virtude de uma apendicite mal curada. Há pouco tempo soube que o Seu Pedro também morreu, mas não sei de quê. Minha mãe já não pode mais atravessar a praça para ir à casa da minha tia-avó porque também nos deixou. No pequeno alpendre da minha tia-avó também não se pode mais encontrar meu tio-avô com suas histórias, esse, eu sei, morreu de velhice, os outros porque o tempo pode ser cruel demais.
A mercearia continua abrigando bêbados, agora não tão simpáticos. O parque, como disse, foi destruído. O tempo não só corrói o metal, pessoas foram perdidas nesse entremeio.
Escrevo em um quarto que outrora foi meu, deitada em um colchão sem lençol e cercada por um monte de caixas empoeiradas.

“Lava que cobre e queima tudo, tudo a nossa volta
Solidão, não tem mais aqui
Muito amor, des' que você chegou”

quarta-feira, 5 de março de 2014



Ócio ou acaba em dor ou em tédio
Nem tudo tem remédio

Horas mortas




Você foi embora e não se despediu
Soubesse antes teria escrito uma carta só pra ficar guardada, quiçá com alguns borrados pelas lágrimas
Talvez pouco te choraram
Os letreiros, as ruas, até mesmos os nomes das ruas continuaram a mudar

Às vezes sobra apenas o cheio/vazio da solidão
E estar cheio de tudo – ainda que de solidão – quase não leva a lugar algum

A voz calada
A alma silenciada
As horas mortas
A felicidade inexistente

Porque desde o dia que você foi embora só há um pequeno esforço de continuar respirando
Você foi embora e levou um pequeno pedaço vital de mim

Não há muito o que buscar na memória
A gente tenta atravessar a vida atrás de pequenas revelações
Porque no fim todos sabemos que a vida não tem sentido algum