Sempre que escrevo um poema, um poeta de verdade se remexe no túmulo, por dor ou por pena

sábado, 6 de julho de 2013

as ondas.



“Deus, como a vida é essencialmente odiosa! Que truques sujos faz conosco;, num momento estamos livres;  no outro, é isto” [p.282]
As ondas, escrito entre 1929 e 1931, é total fluxo de consciência. Nas palavras de Woolf queria ela incluir praticamente tudo, impregnar, incluir o nonsense, o fato, o sórdido, mas tornados transparentes. Não há dúvidas de que o fez, a certa altura chegamos a gritar dentro de nossa própria consciência, e pedimos silêncio. Imploramos que as personagens parem de pensar, de observar, de desmistificar essas vidas sórdidas e, ainda assim, não conseguimos parar de ler. Contraditoriamente foi o livro que mais demorei a ler, talvez sob alegação também levantada por Virginia em certa parte da narrativa quando diz que essa desordem, essa separação, esse caos da vida nos impede de viajarmos e revermos amigos, de sairmos e nos encontramos, e acrescento, de sentarmos e contemplarmos uma obra de arte.
Por alguma vontade cósmica qualquer terminei a leitura em um momento que refletia, e aqui me arriscaria à soberba, quase as mesmas coisas. A narrativa se passa em torno de seis amigos, Bernanrd, Neville, Jinny, Louis, Rhoda e Susan, com personalidades distintas. E pergunto-me como no blues de Coward, “Em um mundo tido como humano e civilizado, por que é que tudo tem que dar tão errado?” Dos amigos próximos, ainda que por vezes distantes em pensamento, partem os primeiros fios de separação. Acreditamos conhecê-los, mas mal sabemos de nós mesmos, quem dirá dos outros, quem dirá do destino. Sentimos a mudança quando a nós é adicionado um amigo, mas o esquecimento – e mesmo o não conseguir esquecer – traz profundas transformações em nossas relações. O fio partido de quando os amigos se vão e também de quando nós decidimos partir.
Das máscaras que colocamos diariamente, não por maldade, não por debilidade de nossa fraca alma, mas porque a vida exige, e mesmo quando tentamos nos despir de todas elas, o que encontramos são mais máscaras. Nas falsas tentativas de dizer “Sou isto, sou aquilo”, diz Louis.  Como em um conto de Poe em que o pintor retira a vida ao retratar a mulher amada e um romance de Wilde em que quando se mata o retrato impregnando de vida, extingue-se a vida de seu muso; tecemos redes e nos tingimos com a cotidianidade da vida, ao nos desmascararmos ficaremos vulneráveis à morte, e assim já estamos simplesmente por refletir sobre isso. Talvez os ignorantes sejam felizes.
E em certo momento da narrativa pergunta-se “O que são histórias?” “Qual é a minha história?”, e acreditamos conhecer a história de nossos amigos, entender de suas dores e seus sofrimentos. Nada sabemos que não seja a trivialidade de algo que é bastante concreto como a caneta está na mesa, ou o jantar foi servido, afora isso tudo é apenas conjectura.
Nos separaremos irremediavelmente, como me separei de meus 3 amigos, como eles se separaram de mim. Como se separaram Bernanrd, Neville, Jinny, Louis, Rhoda e Susan. Nós que por muitos momentos parecemos estar em completa e absoluta sintonia também fomos tomados pelas ondas do correr da vida. Nós que ainda que nos encontremos e em uma reunião assistíssemos episódios de The Office, de Family Guy, de Simpsons, que discutíssemos Borges, que jogássemos vídeo-game a madrugada inteira e dormíssemos, estaríamos irremediavelmente distantes, porque somos outros, porque a vida é outra e porque a amizade se dissipou. E ecoa as palavras de Rhoda: “Não ande mais, todo é resto é tentativa e fingimento. Aqui é o fim.”
A morte de um amigo, Percival, também é um tema constante em As ondas, mas também a morte de quem continua vivo. Assim aproximo mais uma vez a narrativa da vida real, de todos esses nossos amigos que estão mortos, mesmo vivos. Mas que ainda assim eu me arriscaria a tê-los novamente por perto um instante, para que não sejam como Percival lembrança bramida de esquecimento.
E a vida nos destruiu, destruiu a nós e a nossos amigos. E chego a acreditar que realmente nascemos para ser sozinhos.
 
“O espaço da minha mente ficou claro. Vi através das densas folhas do hábito. Debruçado no portão arrependi-me de tanta desordem, tanta irrealização e tanta separação, pois não se pode atravessar Londres para ver um amigo, com a vida tão cheia de compromissos; nem pegar um navio para Índia e ver um homem nu a flechar um peixe em águas azuis. Eu disse que a vida fora imperfeita, uma frase inacabada.” [p.273]
As ondas, Virginia Woolf, trad. Lya Luft. 
Foto: Nicole Kidman interpretando Virginia Woolf em As horas.
 
 

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