Sempre que escrevo um poema, um poeta de verdade se remexe no túmulo, por dor ou por pena

domingo, 8 de setembro de 2013

engrenagem da morte



Não haveria Aleph em baixo de nenhum degrau da escada, porque não havia sequer escada. Nenhuma esfera furta-cor para que eu visse a aurora da tarde, as multidões da América, as ruas de Buenos Aires ou de Londres, para que eu contemplasse o inconcebível universo, a modificação do amor e a engrenagem da morte, para que eu a visse refletir em todos os pontos, e visse no Aleph a terra, e na terra o Aleph, e no Aleph ela, e só ela eu desejaria ver. Para que meus olhos e minha camisa não se manchassem de lágrimas, porque em breve não me lembrarei com exatidão de todos os seus traços. No sombrio dos sonhos penso que você não morreu, em outros penso que foi sua escolha morrer, como alguém que decidisse entregar seu corpo às águas porque a existência é muito penosa. Acalenta-me a segunda opção. Nada posso fazer com os pesadelos, talvez resida neles as únicas lembranças que terei de ti. Fotos não são suficientes, não posso ouvir sua voz. Não me lembro do seu cheiro. Não poderei recobrar suas sensações em uma xícara de chá. Pouco a pouco sinto que me perco em um labirinto de lembranças e pesadelos. Foi embora muito cedo.

Cada centímetro da casa sentia a falta irreparável dela.

"Nuestra mente es porosa para el olvido; yo mismo estoy falseando y perdiendo, bajo la trágica erosión de los años, los rasgos de Beatriz. "

el aleph
J.L. Borges

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