Sempre que escrevo um poema, um poeta de verdade se remexe no túmulo, por dor ou por pena

sábado, 29 de outubro de 2011

conto taciturno

Este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto
te empobrecem de afeto. No gesto te consomem.
Tocaram-te, nas tarde, assim como tocaste,
adolescente, a superfície parada de umas águas?
Tens ainda nas mãos a pequena raiz,
A fibra delicada que a si se construía em solidão?

Hilda Hilst

De repente aquele cheiro entrou pelo quarto, cheiro que a pouco pensara que nunca mais sentiria. A chuva serviu de pretesto para não sair de casa, pois, agora após tanto tempo e com o coração gélido não poderia se negar a sentir aquele cheiro exato. Trancou todas as portas e deitou-se. Seria um sinal? Após a chuva viria o arco-íris, mas isso agora não faria a menor diferença. Nem todo o céu límpido seria mais importante que o momento que finalmente havia se repetido após tanto tempo.

Confessara em silêncio que aquele era um momento que poderia ser o anterior a morte. De nada adiantaria viver sem poder sentir ao menos vezenquando aquele cheiro, o cheiro exato dele. Pode ser que após tanto tempo já não se tratasse mais do mesmo cheiro que sentiu quando o viu pela primeira vez. Pode ser que após tanto tempo apenas inventou um outro cheiro qualquer que serviria apenas para recriar os momentos em que a saudade aumentava tanto.

Ela que a pouco se queixava da solidão, agora sentia aquela mesma do momento da partida, quando ele disse que não mais voltaria. Decidiu nesse dia morrer, ou, viver ainda mais, com mais intensidade. Nenhuma promessa foi cumprida, e às vezes pegava-se pensando como tudo poderia ter sido diferente.

Aquela sombra que faziam os dois ao lado da cama no canto da parede nunca mais foi a mesma. Foi quando todas as coisas se dissolveram e sabia que desse caminho não haveria volta. E o amava muito a ponto de deixar qualquer caminho, ainda que nesse a felicidade fosse certa. Mas de nada adiantou.

Lembro-se dos momentos em que desejava ardentemente as horas que passavam naquele quarto, sob a penumbra. E por um instante passou por sua cabeça todo um filme, e parecia agora que tudo se repetia. Voltou os olhos para o relógio, mas percebeu que as horas não estavam paradas. O seu sonho afinal era apenas um sonho.

Começou a chorar.

Pensou que após tanto tempo as lágrimas finalmente haviam secado, mas enganou-se mais uma vez. Chorava agora não pelo que foi, muito menos pelo que poderia ter sido. Chorava enfim porque aquela saudade doía e sabia que cada vez que a brisa trouxesse aquele cheiro doeria da mesma forma e como se fosse a primeira vez.

Mas não era rara essa sensação de morte interna e logo depois de uma petição à vida, embora tivesse medo que essa petição deixaria de se dar uma hora. E pensou nisso de chorar e sentir saudade toda vez que sentisse o cheiro dele, só que agora percebeu que alguma coisa lá no fundo doía mais. E doía não porque um ou outro decidiu não mais ficar junto. Doía porque ela sabia que a qualquer momento não mais doeria e o sentir nada seria pior que qualquer pedido de volta.

E só, muito só, repetiu baixinho implorando que alguém ouvisse: “Ah como eu queria parar o mundo agora, só para poder te abraçar!”

sábado, 22 de outubro de 2011

ela disse adeus


Pela rua, carros e postes. Cabelo ao vento e o corpo tatuado. Andou por ruas que não conhecia e visitou bares esperando encontrar no rosto de alguém o rosto exato dele. Foi a festas esperando encontrar no corpo de alguém o mesmo corpo que há pouco lhe dava abrigo. Vinte dias haviam se passado desde que anunciara o derradeiro fim. Uma nova tatuagem no corpo marcaria o espaço de uma vida.
Pela janela aberta em que ele se debruçou na mesma espera inútil em que ninguém apareceu, ele a viu partir.
Dias depois o encontraram caído perto dos livros. Estava morto.
Quando ela recebeu a notícia não poderia esboçar mais nenhuma reação. Nada poderia ser feito. Ninguém muda o que está escrito. Nem paz nem culpa no coração. Nenhuma reação.


“Ela disse adeus, e chorou,
já sem nenhum sinal de amor.
Ela se vestiu, e se olhou;
sem luxo, mas se perfumou.
Lágrimas por ninguém,
só porque, é triste o fim.
Outro amor se acabou”

o vento

“Se a gente já não sabe mais rir um do outro meu bem então o que resta é chorar”, foi o que estava escrito no papel antes de virar um barco e ser colocado na água. Simulou um cais. Simulou pensamentos bons que seriam levados pelo vento e a água. Contornou aquele curto espaço de tempo que ainda restava de vida só para tentar simular um mundo melhor para ele. Tudo em vão. Agora sozinho em seu quarto pensava ser apenas restos de uma história que não foi. Nenhum esforço súbito de vida seria suficiente para que ela fizesse com que ele pensasse o contrário. E ela não faria, não falaria. Não gostava do estrago, de escândalos ou de fofocas. E não preveria mais nada e nem acreditaria na vontade cósmica do universo. Tudo se ajeita no fim. Talvez em algum ponto a amizade tenha sido irremediavelmente perdida. Talvez tudo, talvez nada.

Deitou-se na grama molhada e desejou um mundo melhor. Era só um desejo e só havia aquela frase no papel, e ainda assim, este não chegaria à outra margem, era só um barco de papel afinal. Era só a simulação de um cais.


"Como pode alguém sonhar
o que é impossível saber?
- Não te dizer o que eu penso
já é pensar em dizer
e isso, eu vi,
o vento leva!"

domingo, 16 de outubro de 2011

adeus você

Pegou o primeiro trem e partiu para lugar nenhum. Ora, assim fica certo já que nunca veio de lugar algum. Sem nome, sem endereço, sem telefone. Andou pelas ruas da cidade uma última vez. Abraçou-o como se fosse o derradeiro fim. Sentiu por um instante todo o amor do mundo. Foi até o cais só para olhar o mar, só para fazer um pedido ao acaso. Que de nada adiantaria. Subiu até o prédio mais alto e se apoiou no parapeito, mas, sequer chegou a pensar em pular. Deu a sua última volta entre as pessoas. Lembrou-se de sentimentalismos baratos. De sentimentalismos, baratos. Do abismo que é deixar de sentir pensou que nunca mais voltaria. Voltou somente para encontrá-lo, e talvez fosse assim, ele estava esperando por ela todo o tempo. Esperando para que ela pudesse amá-lo sem justificativas, sem espera, sem pedir nada em troca. Ele estava lá o tempo todo, vagando, perdido, pedindo socorro. Ela apareceu, parecia tão bonita. Nada poderia impedir esse encontro, essa entrega. Nada poderia impedir a posterior fuga, recusa. Andou ela pela cidade uma última vez, lembrando-se de cada gesto, cada palavra, cada lugar, cada momento. Desejou pela última vez nunca tê-lo conhecido. Pegou o primeiro trem e partiu para lugar nenhum. Não haveria mais razão para sobreviver. Sem nome, sem endereço, sem telefone, sem coração.



“Adeus você
Eu hoje vou pro lado de lá
Eu tô levando tudo de mim
Que é pra não ter razão pra chorar
Vê se te alimenta
E não pensa que eu fui por não te amar”

domingo, 9 de outubro de 2011

o quase demônio da perversidade

“Não existe paixão na natureza que seja tão demoniacamente impaciente como a daquele que hesita à margem de um precipício, meditando sobre se há de saltar ou não. Deter-se, ainda que por um momento, na contemplação desse pensamento, é estar inevitavelmente perdido; porque a reflexão nos ordena afastar-nos sem demora e portanto, exatamente por isso é que não podemos. Se não houver um braço amigo que nos ampare, ou se não fizermos um esforço súbito para nos afastarmos do abismo, saltaremos e seremos destruídos.”
O demônio da perversidade
Edgar Allan Poe

Ante o impulso de se jogar ou não do precipício outros tantos são capazes de perverter o sentimento humano. E nesse caso não há ombro amigo e nem esforço súbito para afastar-se. O demônio da perversidade ora capaz de tantas atrocidades com o outro se torna ainda mais imbatível quando age por um impulso que não teria surgido caso não existisse a situação desencadeada por seu rival.

Tal sentimento ignóbil se a pouco chama-se amor não passa da fraude mais barata, uma falácia em maior grau. Tudo se passa quando um outro o procura, você nesse momento tem todas as cartas na manga e pode ganhar ou perder o jogo, quer dizer, pode fazer com que o outro ganhe ou perca. Nesse momento você, dono da situação, não poderá perder a oportunidade de se mostrar no topo da pirâmide. Começa assim o jogo em que cabe ao outro arrastar-se até que tenha o corpo coberto de sangue. Nesse entremeio todo charme é necessário para que o jogo dure tempo necessário para o segundo passo.

O segundo se trata da parte mais aprazível para o causador do sofrimento. É nesse momento que você finge, inventa, fabula um gostar ao mesmo tempo que pede para o outro ir embora. Este, após mais uma vez se arrastar até o sangue às vezes recebe uma carta ou algumas explicações. Estas explicações falaciosas são importantes, uma vez que, através delas você tem a ressalva para um posterior arrependimento.

Ora, esse arrependimento só acontece quando você percebe que o outro não é tão tolo e imperceptível quanto se pensava. Está aí a importância do terceiro elemento, pois através dele você nota algo que não havia notado anteriormente. Sob esse prisma só há, portanto, uma falácia inscrita em outra; um falsário supremo.

Ademais, com o surgimento do terceiro elemento a narrativa torna-se mais interessante. Nesse momento você, e seu sentimento ignóbil, arquiteta uma trama de retorno. Essa trama é importante porque através dela você atinge o fim esperado, toda perspicácia é preciso. Todo erro do outro pode ser usado nesse momento como o estopim da guerra.

Você deve se agarrar ao mínimo detalhe e deve saber usá-lo no momento certo. Não se pode negar nesse momento que algo realmente tenha acontecido. Mas um sentimento surgido após a percepção do outro seria da mesma forma justo? Se o terceiro elemento não houvesse também criado uma situação de risco teria o outro se entregado ao falsário?

Todas essas perguntas permanecem evidentemente sem resposta, e tantas outras podem também ser feitas. O demônio da perversidade age nesse momento mostrando sua face mais oculta. Tudo dará certo, é claro, os demônios se usam de todas as armas até que um dia o terceiro elemento desapareça, ou, apareça ainda um quarto que pode se envolver tanto em um quanto em outro lado.

Esse não é o caso da natureza demoniacamente impaciente que hesita sem saber se deve ou não pular do precipício, é o caso de outra infinitamente pior, que hesita se deve ou não jogar o outro do precipício e esperar que ele estilhace e se encha novamente de sangue.