Esse
não será o conto da página 516, das Obras Completas I, da classificação decimal
860(82) B732o.
A
classificação decimal consiste em designar por números cada um dos grupos pelo
nome do assunto que lhe é próprio. O conjunto dos conhecimentos humanos é inicialmente
dividido em dez classes, cada uma por um algarismo, começando com o 0. Assim
temos 0 – Obras gerais, 1 – Filosofia, 2 – Religião/Teologia, 3 – Ciências Sociais
e Direito, 4 – Filologia e Linguística, 5 – Ciências matemáticas e naturais, 6 –
Ciências aplicadas e tecnologia, 7 – Bellas Artes, 8 – Literatura, 9 – História
e Geografia. Cada uma dessas classes é subdividida a partir de outras classificações, e assim por
diante...
Estamos
na Biblioteca, no terceiro andar, a coluna do lado direito de quem sobe as
escadas está dividida em vinte e duas fileiras. Cada fileira tem cerca de doze
estantes com seis prateleiras cada, todas praticamente completamente ocupadas
por livros. Começa em 60 – Ciências aplicadas e Tecnologia e vai até o 9 e tantos. Na verdade termina com Yan/Ari
2632, que não sei do que se trata. Passamos, portanto, por várias áreas, de
bellas-artes, arquitetura, até chegarmos a Literatura – 8, quinta estante,
quinta prateleira. A ficha colocada logo acima da estante indica Literatura
espanhola, a quinta prateleira é praticamente toda ocupada por livros do Sr. B.
Abaixamos para olhar melhor os títulos. Alguém mexeu no IV volume das Obras
Completas, 860(62) B732o. Olhando de perto a estante percebemos que também
possui livros do Sr. C, 860(82) B616i, seu amigo. Agora já estamos sentados no
chão. Se a vista lhe possibilita olhar para a estante quatro, primeira
prateleira, perceberá que o volume mais grosso é Martín Fierro. Também na
quarta estante você encontrara livros de Mario Vargas Llhosa.
Você
é levado a olhar, nessa mesma estante, a
quinta prateleira, Sophia de Mello Breyner Andresen, 869.0 A561p. Você pega o
volume I Obras Completas 860(82) B732o, se o tempo permite você também leva o 869.0
A561p. Você se levanta e caminha pelo corredor no mesmo sentido que entrou,
rumo a alguma mesa. Você passa por Samuel Beckett, por Camus, do seu lado
direito. De repente a primeira estante do lado direito lhe chama atenção. A
primeira prateleira está coberta por livros do Kafka, existem mesmo volumes em
alemão. Espere, a segunda também! Exceto por uma edição grande de Thomas Mann,
Os Buddenbrooks, 830 M282buP. Seu olhos são levados para a prateleira debaixo,
um volume também grosso de A montanha mágica 830 M282zP. Só agora você percebe
que a letra inicial dessa segunda sequência corresponde ao sobrenome do autor:
A561p, Andresen; M282buP, Mann; B616i, Bioy Casares. Olhando um pouco abaixo
você pode encontrar livros de Raine Maria Rilke, abaixo Bertolt Brecht. Quando
você percebe já está abaixado olhando a
estante.
Você
nem saiu do corredor e se olhar para o lado esquerdo encontrará Fernando
Pessoa. Sim, o cara de bigodinho. Ele começa a conversar com você, de repente é
outro. Um tal de Álvaro de Campos. Ele pede que você o acompanhe até Poe, um cara
que ele traduziu. Você agradece, mas diz que está com um pouco de pressa.
Você
se despede e se senta na primeira mesa (na cadeira, obviamente), ainda próximo
de Literatura, porque assim fica mais fácil sentir a vibração empoeirada de
alguns livros que talvez ainda não foram abertos, exceto para colocar a
etiquetinha em número decimal. Você está com o livro do Sr. B e da Sra. A.
embora quisesse chamá-la de Sra. S.
Você
ficou quase 15 minutos conversando com Fernando Pessoa, ele disse algo como “tudo
vale a pena se a alma não é pequena”. Ele quase te levou para conhecer Poe, mas
você disse que estava com um pouco de pressa. Sentado na mesinha tentando ler
alguma coisa da Sra. S – sim, você vai chamá-la de Sra. S – de repente aparece
do seu lado direito o Sr. Bloom. Ele carrega seu livro O cânone Ocidental.
Começa a falar com você e de repente cita uma tal Sra. W, que mesmo meio século
após sua morte não tem concorrentes nem entre as escritoras vivas. Então ele te
leva à prateleira onde estão os 820. A Sra. W não está porque foi dar uma volta
em Londres. O Sr. Bloom lhe diz que a Sra. W sofreu grande influência do Sr. S,
que está na mesma estante que ela. É uma pena que o Sr. S também tenha saído um
momento para ir ao banheiro.
Você
precisa voltar e sentar para ler o livro do Sr. B. No caminho de volta ainda
encontra Carllyle, Faulkner e Fitzgerald, eles estão conversando. Você esbarra
sem querer em um deles e deixa cair um papel que carregava. Quando abaixa para
pegar está diante da quarta estante e encontra Moby Dick 820(73) M531mP, o
livro, porque veja bem, possui uma etiqueta decimal. O Sr. S não estava, mas
você foi praticamente onde tudo começou, explica o Sr. Bloom.
Você
se despede e procura uma mesa afastada das vibrações empoeiradas de livros
intactos. Alguns autores precisam dormir enquanto você lê outros. Se andares
muito tempo pelos corredores da Biblioteca pode ser que todos acordem ao mesmo
tempo e comecem a conversar com você, o que seria deveras caótico.
É
a Biblioteca da Universidade CEP 38408-168, mas poderia ser qualquer uma.
“A
Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em
qualquer direção comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos livros se repetem
na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão se
alegra com essa elegante esperança.”
Obras
completas I, p. 532, do Sr. jorge luis Borges, 860(82) B732o
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