Passei pelo
bairro de minha infância, do parque que era parada quase obrigatória na volta
da escola que ficava no quarteirão de cima restaram apenas canos enferrujados,
mato e uma cerca quebrada. Os bancos da praça também quase não mais existem,
são apenas lugar de paragem dos drogados que não sabem se é dia ou noite. Antes
não existia bem um parque, lembro-me que me sentava com o senhor guardinha que
fazia tapetes manuais naquelas armações de madeira. De lá eu olhava minha irmã que
jogava vôlei com as amigas, não sei quantos anos eu tinha, talvez quatro ou
cinco. Também não me lembro onde minha mãe se encontrava nessas horas, talvez
na casa da minha tia que ela sempre
visitava com a minha avó todas as manhãs. A casa da minha tia situa-se
exatamente no quarteirão ao lado do quarteirão da praça, mais precisamente
entre a praça e a escola que estudei dos seis aos onze anos. Depois dessa
casinha demolida, onde ficava o guardinha, veio o parque. Ou não me lembro
muito bem se eles conviveram durante certo tempo juntos, a casinha, o guardinha
e o parque. Creio agora, forçando um pouco a memória que o guardinha não
cuidava da praça, mas a praça sediava uma caixa d’água, provavelmente a que
abastecia o bairro, e o guardinha vigiava a caixa d’água e não a praça. Recordo
do guardinha sair correndo e deixar o tapete sobre o banco para fechar o
registro porque a água estava transbordando pela caixa, que não era bem uma caixa,
mas um espécie de cano comprido de uns três ou quatro metros. E depois disso veio o parque, ou conviveram
juntos. Ainda me recordo da vertigem que era aquele brinquedo sem sentido que
roda, roda, roda até o estômago embrulhar. Lembro-me também do brinquedo que
era uma espécie de treinamento militar com uma série de obstáculos, e da
primeira vez que consegui dar cambalhota segurando as argolas, julgando fazer
arte circense. Visitava meu tio-avô nessa casa que era da minha tia-avó, ele
sempre estava sentado na sua cadeira de balanço na área ao lado de um carranca
que ele dizia ter poderes, objeto que minha mãe julgava feio mas que sempre
achei deveras interessante. Ele sempre arranjou namoradinhos para mim,
geralmente os doidinhos que passavam na rua ou os meninos de cor escura e
desdentados, pra ser sincera, nunca me opus veementemente a nenhum deles e até
achava graça. Ele também me contava história de quando trabalhava e de como
perdeu o dedo no serviço, ele tinha uma mão com um dedo pela metade. No
quarteirão do lado esquerdo da praça, o da casa da minha tia-avó era do lado
direito, referência de quem estava sentado no banco da casinha do guardinha que
fazia tapetes e vigiava a água que transbordava, existia uma mercearia, lá com
pouco dinheiro era possível fazer a alegria de toda criança. Seu Pedro, o dono
da mercearia, sempre foi um ótimo atendente de mercearia, daqueles simpáticos e
que te chamam não pelo nome, mas pela alcunha de neta de fulano de tal. Na
mercearia, ao contrário do que se vê hoje em dia, sempre existiam aqueles
velhinhos bêbados simpáticos que sempre deixavam você escolher alguma coisa do
lugar e anotavam na conta deles. Meu avô era um desses velhinhos, mas não tão
simpáticos, que ficavam na mercearia. Às vezes bebia demais e algum dos filhos
tinha que buscá-lo, mas não me lembro muito dessas cenas, só de alguns cortes e
machucados que necessitavam de curativos. Minha avó costuma contar que eu era a
neta preferida dele, por algum motivo a única que ganhava presentes e a única
que recebeu realmente seu afeto. Meu avô era moreno, alto, e fazia bicas, que
não sei qual o nome moderno para isso. Transferiu o ofício para seu filho, meu
tio. Recordo de sua mão trêmula e dos “esbravamentos” quando deixava algum
instrumento cair em virtude da doença.
Meu avô foi o
primeiro a morrer, em virtude de uma apendicite mal curada. Há pouco tempo
soube que o Seu Pedro também morreu, mas não sei de quê. Minha mãe já não pode
mais atravessar a praça para ir à casa da minha tia-avó porque também nos
deixou. No pequeno alpendre da minha tia-avó também não se pode mais encontrar
meu tio-avô com suas histórias, esse, eu sei, morreu de velhice, os outros
porque o tempo pode ser cruel demais.
A mercearia
continua abrigando bêbados, agora não tão simpáticos. O parque, como disse, foi
destruído. O tempo não só corrói o metal, pessoas foram perdidas nesse
entremeio.
Escrevo em um
quarto que outrora foi meu, deitada em um colchão sem lençol e cercada por um
monte de caixas empoeiradas.
“Lava que cobre e queima tudo,
tudo a nossa volta
Solidão, não tem mais aqui
Muito amor, des' que você chegou”